terça-feira, 26 de junho de 2018

O crime da névoa

Fonte: https://www.pixcove.com/walkers-hikers-fall-fog-mist-autumn-moor-man-gentleman-back-light-mood-atmosphere-tree-disposition-landscape/



O despertador rompeu às 5 horas em uma manhã incomum e excessivamente alva. Daniel, sentiu uma névoa tímida entrar pela janela acompanhada de um vento frio. Arrumou-se rapidamente, tomando um café requentado com uma broa que sobrara do dia anterior. Saiu para o trabalho com o mau humor habitual da velha manhã, percorrendo a extensa rua para pegar o ônibus da firma.
Entretanto, algo estava diferente. Uma névoa densa era a protagonista da manhã gélida daquela quinta-feira fatídica. Não tinha como enxergar muita coisa a não ser um pedaço de chão que surgia em seus passos lentos e cautelosos. Já se afastara cerca de 100 metros do prédio e se sentia um estrangeiro na própria rua. Mantinha o caminhar vagaroso imaginando a impossibilidade da chegada do ônibus dentro daquela vasta brancura que imperava no nascer do dia.
- Vai passar logo, pensou.
Manteve o passo em ritmo lento até sentir o sapato pisando em uma poça com um líquido viscoso e escuro. Parou e se aproximou do líquido. Percebeu que olhando de mais perto a cor vermelha se revelava. Era sangue. Será de algum animal morto?
Andou mais um pouco e viu uma mão feminina e jovial, com uma pulseira de ouro e uma aliança de compromisso prateada, típica dos namoros adolescentes. Foi o primeiro contato com o corpo que se revelava brutalmente ferido. Era uma jovem que jazia com uma expressão de tranquilidade, mas com olhos abertos num contraste que transmitia pavor. Vítima de atropelamento? Não. Um corte profundo na jugular revelava o homicídio. Tocou o sangue e sentiu que o líquido ainda estava quente. O assassino poderia estar próximo.
O que fazer? A névoa era implacável. Ouviu passos. Começou a suar. Para onde correr? Em qual direção poderia se afastar do assassino? Permaneceu imóvel, mas o barulho dos passos só aumentava. Mais alto, mais alto, agora o indivíduo já estava correndo. Ele me vê?! Pensou.
Começou a correr num frenesi alucinante de volta para o apartamento. Tudo era branco. Uma cortina de fumaça o impedia de enxergar e perdeu o sentido de direção. Adentrou uma pequena mata próxima ao prédio repleta de desníveis perigosos. Os passos de seu oponente permaneciam. Parecia uma marcha militar. Só ouvia passos. Corria e trombava com galhos e uma árvore seca, que só enxergava do alto do prédio. Nunca tão próximo. Corria e se machucava naquela área de preservação ambiental que agora lhe servia como refúgio e incerteza.
Escondeu-se atrás da árvore aguardando que a névoa se dissipasse. Tentou fazer o mais absoluto silêncio, mas sua respiração ofegante o acusava. Os passos cessaram. O que tramava seu caçador? Ele ao menos era a caça? Aos poucos sua respiração normalizou e apenas o vento era sentido, os galhos se mexiam timidamente, pássaros voavam e Daniel podia sentir o bater das asas.
Olhou ao seu redor e sentiu-se cego. Tudo que enxergava era um branco intenso como se estivesse dentro de uma nuvem. O assassino não poderia encontrá-lo. A cortina nebulosa também se manifestava para o outro. A sensação de estar a poucos metros de um assassino e sua vítima o aterrorizava. Permaneceu meia hora paralisado, sem dar um pio e observando a natureza. Os 30 minutos mais longos de sua vida e a névoa resistia. Decidiu agir. Pegou uma pedra e a fez de arma. Queria impor um obstáculo ao assassino.
Caminhou lentamente para a entrada do prédio. Cada passo era calculado. O mínimo de barulho era preciso. Se pudesse rastejava naquele momento. Saiu completamente da mata e já estava no asfalto. Segurou firme a pedra e se sentisse a presença de qualquer um lançaria o objeto em autodefesa.
Conseguiu ver a fachada e o portão de entrada. Estava próximo da salvação. Pegou a chave e não resistiu nos metros finais. Correu muito, chegou no portão, inseriu a chave forçando a abertura. Um clique e abriu. Se jogou para dentro do prédio após bater o portão com toda a força.
Estava salvo. Aliviado. Vivo. Levantou-se tremendo de adrenalina e foi para o elevador. Apertou o 7º e subiu. Pensava na dor da morte. Qual a sensação de uma faca entrando nas estranhas e dilacerando seus órgãos? Atingindo os ossos e músculos, fazendo uma bagunça interna e sangrenta no corpo. E a dor? Seria breve ou demorada?
Chegou no apartamento. Abriu a porta e entrou. Percebeu uma velha e horripilante companhia. A névoa também estava lá a sua espera. Entrara timidamente pela janela e agora estava por toda parte. Daniel tentou sair para o hall, mas a porta não se abriu. Tudo era branco novamente, até no seu refúgio. Foi até o sofá e sentiu que a névoa queria sua alma. Sentou-se confortavelmente e sentiu uma dor dilacerante que nunca havia sentido e logo o fim. Morreu com uma expressão de tranquilidade, mas com olhos abertos num contraste que transmitia pavor.

FiM.

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