quinta-feira, 6 de julho de 2017

A compaixão do vira-lata



Mais uma noite fria se repete. O ritual é o mesmo de todos os dias. 
Uma manta suja serve de casaco de dia e à noite vira cobertor. Papelões se transformam em um colchão, pelo menos na mente do velho maltrapilho. 
Uma parede e uma calçada lhe afugentam do vento que corre tão solto que dá para ouvir sua voz. A geada ecoa pelas ruas.

Vivo mais um dia, pensa. Resisto até quando? Imagina.
A morte seria um consolo para tempos difíceis. O ser humano é incapaz de enxergá-lo. A invisibilidade o corrói.
Apenas um cachorro se senta ao seu lado. Um fiel e leal amigo vira-lata.
Até as pulgas se misturam. Ali tudo é cumplicidade. Até uma quentinha recém conquistada por compaixão é dividida. Isto é amizade!
Esse cachorro o mantém vivo. É a companhia mais humana dessa existência cruel.
Ninguém deveria dormir na rua. É indigno.
Amanhã começa mais uma batalha para o andarilho. Adolescentes se tornam julgadores maléficos e o empurram caindo na gargalhada e se exibindo para as garotas que riem, com certa pena.
Mas afinal, o que importa? Pensam. É só um mendigo.
O cão late de raiva ao ver seu amigo na sarjeta. Avança e leva um pontapé do jovem descolado. Mais uma gargalhada surge na volta da escola.
Hoje, não posso comer, diz o mendigo. Tenho dor nos poucos dentes que me restam. Fala para seu interlocutor canino que se achega e lhe lambe as feridas.

É mais uma triste cena do dia a dia. Amanhã tudo se repete. E o frio entra em seu sangue. Pelo menos se conseguisse uma pinga para esquentar os pulmões, logo pensa.
Vai até o bar e olha para o balcão. O dono o vê tremendo. Pega um descartável e serve a cachaça da compaixão. Dose dupla.
Entrega o copo e o pede para seguir o seu rumo. Um incômodo ambulante, logo dispensado pelo empresário.
Sem nada no estômago, engole de uma vez o líquido que desce marcando o esôfago como um acalanto de inverno. 
Ainda deu tempo de passar um jovem num carro conversível, do papai, que grita a plenos pulmões. Bêbado vagabundo!
Alerta três senhoras voltando da igreja que olham do outro lado da rua e balançam a cabeça em negativa finalizando com o sinal da cruz.
Misericórdia! Diz uma delas. E ainda temos que conviver com isto! Concorda a outra beata que acabara de confessar.

E o mendigo se afasta mais uma vez, como se desculpasse do pecado que não cometeu. Aperta o passo para não perder a calçada, certificando de que a fina manta e os papelões ainda estejam com ele. A gélida noite se aproxima. 
O vira-lata, o mantém a vista e não larga o dono. Mais que um amigo, um anjo.
Simeão arruma mais uma vez seu quarto improvisado na noite mais fria do ano.
Deita, e o amigo se aconchega ao seu lado tentando lhe transmitir algum calor. O próprio Simeão se recorda que tem nome e abraça seu amigo de forma intensa como se dissesse que o amava. O vento vem mais forte.
Uma lágrima escorre dos olhos do velho e o cachorro lhe devolve um olhar tristonho. É a última noite do maltrapilho. Sua despedida. Pela manhã, não levantou-se mais.
O cão não entendeu quando o levaram. Porém, latiu. Latiu muito! Protestou como num tribunal. 
A amizade das ruas tem laços mais fortes que se possa imaginar. Seria bom ter um final feliz para o vira-lata tão humano. Mas, com o fim da dupla não resistiu duas noites. Morreu como seu dono, de uma tristeza infinita. 

Stefan 

2 comentários:

  1. Triste realidade... destino cruel e desumano, retrato da falta de solidariedade e compaixão. Mais um texto emocionante, parabéns!

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