Mais uma noite fria se repete. O ritual é o mesmo de todos os
dias. 
Uma manta suja serve de casaco
de dia e à noite vira cobertor. Papelões se transformam em um colchão, pelo
menos na mente do velho maltrapilho. 
Uma parede e uma calçada lhe
afugentam do vento que corre tão solto que dá para ouvir sua voz. A geada ecoa
pelas ruas. 
Vivo mais um dia, pensa. Resisto até quando? Imagina. 
A morte seria um consolo para tempos difíceis. O ser humano é
incapaz de enxergá-lo. A invisibilidade o corrói. 
Apenas um cachorro se senta ao seu lado. Um fiel e leal amigo
vira-lata. 
Até as pulgas se misturam. Ali tudo é cumplicidade. Até uma
quentinha recém conquistada por compaixão é dividida. Isto é amizade! 
Esse cachorro o mantém vivo. É a companhia mais humana dessa
existência cruel. 
Ninguém deveria dormir na rua. É indigno. 
Amanhã começa mais uma batalha para o andarilho. Adolescentes se
tornam julgadores maléficos e o empurram caindo na gargalhada e se exibindo
para as garotas que riem, com certa pena. 
Mas afinal, o que importa? Pensam. É só um mendigo. 
O cão late de raiva ao ver seu amigo na sarjeta. Avança e leva um
pontapé do jovem descolado. Mais uma gargalhada surge na volta da escola. 
Hoje, não posso comer, diz o mendigo. Tenho dor nos poucos dentes
que me restam. Fala para seu interlocutor canino que se achega e lhe lambe as
feridas. 
É mais uma triste cena do dia a dia. Amanhã tudo se repete. E o
frio entra em seu sangue. Pelo menos se conseguisse uma pinga para esquentar os
pulmões, logo pensa. 
Vai até o bar e olha para o balcão. O dono o vê tremendo. Pega um
descartável e serve a cachaça da compaixão. Dose dupla.
Entrega o copo e o pede para seguir o seu rumo. Um incômodo
ambulante, logo dispensado pelo empresário. 
Sem nada no estômago, engole de uma vez o líquido que desce
marcando o esôfago como um acalanto de inverno. 
Ainda deu tempo de passar um
jovem num carro conversível, do papai, que grita a plenos pulmões. Bêbado vagabundo! 
Alerta três senhoras voltando da igreja que olham do outro lado da
rua e balançam a cabeça em negativa finalizando com o sinal da cruz. 
Misericórdia! Diz uma delas. E ainda temos que conviver com isto!
Concorda a outra beata que acabara de confessar. 
E o mendigo se afasta mais uma vez, como se desculpasse do pecado
que não cometeu. Aperta o passo para não perder a calçada, certificando de que
a fina manta e os papelões ainda estejam com ele. A gélida noite se aproxima. 
O vira-lata, o mantém a vista e não larga o dono. Mais que um
amigo, um anjo. 
Simeão arruma mais uma vez seu quarto improvisado na noite mais
fria do ano. 
Deita, e o amigo se aconchega ao seu lado tentando lhe transmitir
algum calor. O próprio Simeão se recorda que tem nome e abraça seu amigo de
forma intensa como se dissesse que o amava. O vento vem mais forte. 
Uma lágrima escorre dos olhos do velho e o cachorro lhe devolve um
olhar tristonho. É a última noite do maltrapilho. Sua despedida. Pela manhã, não levantou-se
mais.
O cão não entendeu quando o levaram. Porém, latiu. Latiu muito! Protestou como num tribunal. 
A amizade das ruas tem laços mais fortes que se possa imaginar. Seria bom ter um final feliz para o vira-lata tão humano. Mas, com o fim da dupla não resistiu duas noites. Morreu como seu dono, de uma tristeza infinita. 
Stefan 

 
Triste realidade... destino cruel e desumano, retrato da falta de solidariedade e compaixão. Mais um texto emocionante, parabéns!
ResponderExcluirObrigado Nilton!
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